Mamãe é feita de amor (e carne e osso)
/"Mamãe, você é feita de amor!”, me disse o pequetito por volta das 19h40 de uma terça-feira, com uma linda cara ensaiada, a cara da fofura, enquanto eu tentava tirar o nó apertado que o professor do futebol deu, cheio de razão, na chuteira desgastada. “Sou feita de amor, e carne e osso!”, eu retruquei na mesma hora, mantendo o tom de voz suave, mas certamente sob influência dos 60 minutos de trânsito lento, duro, ininterrupto que tive que aguentar pra pegar dois na escola, levar um no inglês, outro no futebol, e aí depois buscar todo mundo enquanto a trilha sonora do Sonic disputava espaço com as buzinas no meu ouvido. Sou feita de amor, com absoluta certeza, mas também de carne e osso, e ele se espantou com a expressão ainda pouco batida aos três anos de idade.
"O que é isso, mãe?” "Isso quer dizer que eu sou gente de verdade, como todas as outras”, eu respondi resumidamente, pensando o que de fato eu queria dizer. A mim não interessa que ele cresça achando que sou algum tipo de ser especialíssimo, que tudo ama, tudo sabe e tudo aguenta, sob nenhum aspecto. Pesa pra mim, pesará pra ele. Vamos construir verdades, por favor, e eu não via a hora de terminar a maratona de banhos e jantar que a gente ainda nem tinha começado. Talvez esse fato me doesse menos se outros, em outros contextos, em outros tempos, não tivessem tentado me enfiar essa inverdade goela abaixo, se eu não tivesse sido treinada para acreditar e repetir que, sendo mãe, sou feita de amor e, assim, só respondo com amor.
Claro que a frase dele, seguida de beijinho na bochecha, não tem esse peso todo. Ele só quis dizer que me ama e que sabe que eu o amo muito, e eis aí, agora sim, uma verdade absoluta. Mas é importante que ele saiba que me ama porque sou gente, e me ama nesse contexto de desafio, e aprendizado e suor que faz a nossa experiência tão fantástica e tão humana. É importante que saiba que ama uma mãe que às vezes se cansa de dançar a Macarena, que tem hora que faz questão de esquecer o nome da galera toda dos Vingadores, e que pode ser até que se atrase propositadamente pra pegá-lo na escola, por uns cinco ou dez minutos, coisa pouca, só pra acabar de ver aquele vídeo engraçado no Youtube. Ele ama uma mãe que é gente.
Desfiz o nó. Ganhei um abraço suado e fomos pro banho, porque o tempo passa rápido e ainda precisamos ler histórias, e brincar com os bonecos infinitos de Lego, e esquentar o leite e etc. "Tem carne em você, mãe?" "Sim, é um jeito de falar. Em você também tem. É o nosso corpo, nossos músculos, olha aqui as suas pernocas..." "Mas no meio da sua carne tem amor, sabia? Eu sei que tem, mãe, muito amor..." E aí ganhei um abraço fresquinho, cheiroso, e, claro, mais uma dose de amor.