Ele não existe, mãe!

Sincerely Media/Unsplash

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Depois que trocou as cortinas do quarto, Karen dorme mais, dorme melhor, mas não foi assim essa noite. Ainda não tinha sol entrando pela fresta quando ela ouviu os passos firmes no corredor, um galope curto, coisa que parecia muito urgente. Ele tateou até conseguir subir na cama, e deitou ofegante em cima da mãe - deitou cada pedaço do seu corpo em cima do da mãe. Cabeça encaixada no peito, barriga com barriga, os pezinhos batendo na altura do joelho dela. Não disseram uma palavra, mas todas as vezes que ela tentou deitá-lo ali ao lado, chega só um pouquinho pra lá, ele subiu de novo, com as mãos firmes segurando o lençol nas duas laterais. Não quer descer, e é assim que vão ficar até a hora do café.

De pé, ela cuidou dos beijos e dos abraços, passou manteiga no pão, insistiu pra incluir uma fruta, "hoje não", "mas que dia então?", até que resolveu perguntar: "o que houve essa noite?" Primeiro foi nada, não tinha acontecido nada, mas depois ele disse que teve um sonho, uma coisa muito assustadora. Ali, no quarto dele, tinha um coelho de pelúcia, muito grande e bastante preto, com umas partezinhas brancas na barriga, e toda vez que ele tentava pegar o brinquedo, ele era de verdade. Tinha aquele nariz cor-de-rosa e o bigodinho quase invisível, que a gente sabe que existe porque encosta na nossa mão. "Queria subir em mim.” "Mas você não gostava dele?" "Não, de jeito nenhum."

Hoje é o coelho, mas na semana passada era o esquilo gigante, e teve também o peixe que pula pra fora do aquário. Tudo começou com os rostos que se formavam na porta de madeira, e desde a semana passada ele não quer mais ir ao banheiro sozinho, e não sabe explicar por quê. Chora se ela insiste, e às vezes ela insiste um pouco. Outras vezes ela aceita, senta ali no chão mesmo e segura a mão dele, volta três ou quatro anos no tempo, se lembra de quando ele estava aprendendo a sentar na privada. Naquela época também moravam sozinhos, enfrentavam juntos os desafios de crescer por dentro e por fora, mas iam passear no parque nos fins de semana, e tomavam sorvete na padaria da esquina, depois da saída da escola. Às vezes, a tia Ju ia com eles. Já são mais de dois meses sem essa rotina, estou com saudades da tia Ju, mas ela já disse pra ele um milhão de vezes que está tudo bem, "vai passar, estamos seguros aqui".

Karen é arquiteta e pode contar nos dedos os atendimentos que fez desde que a pandemia começou. Nas primeiras semanas gastou todas as horas do dia desenvolvendo e concluindo os projetos que tinha pendentes, mas agora quase não toca o telefone, apesar das promessas e das conversas todas que ela tem tentado manter. A tela do computador, que era onde ela via suas ideias nascerem, virou a única janela pro mundo e, a partir dali, eles conversam com a avó, com a professora, com o vizinho que mora bem ali na esquina. É ali também que ela acompanha as notícias do dia, mas uma única vez, não exagera, porque de nada adianta saber demais.

"Você tem medo do coelho?" "Sim", ele respondeu enquanto procurava o outro pé do chinelo. "Por quê?" "Porque ele não existe, né, mãe? Ele simplesmente apareceu."